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Patrimônio socioambiental da Amazônia: "tesouros à espera de um mapa"

Posted: 18 de mar. de 2010 | Publicada por por AMC | Etiquetas: ,

por Flávio Lobo *

Propagadores de discursos de valorização do patrimônio socioambiental da Amazônia, os centros de poder do país são negligentes quando se trata de investir na transformação desse potencial em desenvolvimento sustentável por meio da ciência e da tecnologia

Faça um teste. Diante de qualquer platéia, seja de amigos, colegas, alunos, seja de eleitores, diga que a biodiversidade da Amazônia é um dos maiores tesouros ao alcance da humanidade. Em seguida assegure que a Floresta Amazônica desempenha um papel fundamental nos sistemas hidrológico e climático de uma generosa porção da Terra, na qual se inclui o restante do Brasil. Prossiga falando do valor incalculável da maior reserva de água doce do planeta, e de sua íntima relação com a floresta. Alerte os ouvintes de que o processo de mudanças climáticas em curso certamente afetará a região, e que as ações humanas na Amazônia, por sua vez, repercutirão de forma cada vez mais dramática nos termômetros e no futuro do País. Como conclusão, diga que a Amazônia é o mais rico campo de pesquisas do mundo e, sobretudo do ponto de vista brasileiro, um dos que exigem maior atenção e urgência.
Quais serão as reações a esse discurso? Se a audiência for instruída e informada, provavelmente haverá certo enfado diante de tantos lugares-comuns. Quem, entre os leitores e telespectadores do País, não se deparou várias vezes com declarações muito parecidas?
E quanto a possíveis discordâncias? Alguém talvez faça reparos a algum aspecto, uma ou outra dúvida poderá ser levantada… Mas dificilmente o essencial será questionado. Nada que anime muito o debate.
Se tudo transcorrer como previsto, para não perder a atenção do seu público, conte uma piada.
Mantenha a expressão séria e diga, por exemplo, que, apesar de tantos estudiosos, formadores de opinião, líderes de diversos setores e autoridades do País repetirem esse discurso há décadas, o Brasil investe na Amazônia Legal, que abrange 59% do território do País, ínfimos 3% do orçamento nacional de ciência e tecnologia.
Se ninguém rir, das duas uma: ou você é muito convincente ou a sua audiência é mesmo bem informada. “Quase todos os números relativos a ciência e tecnologia na Amazônia giram entre 3% e 4%. Esse é o tamanho da atenção que o Brasil dá, na prática, ao tão propalado ‘potencial gigantesco da região’”, diz o coordenador de pósgraduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, o sociólogo José Drummond.
De fato, segundo o pesquisador Rodolfo Salm, do Museu Paraense Emílio Goeldi, as instituições de pesquisa e universidades da região recebem 4% da verba nacional para o setor. O biólogo Charles Roland Clement, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), afirma que apenas 3,9% dos grupos de pesquisa do País encontram-se na Amazônia e, no Brasil todo, somente 1,8% têm, por exemplo, a biodiversidade amazônica como objeto de estudo.
Mesmo se não se levar em conta as incomparáveis riquezas socioambientais da região, as desproporções saltam aos olhos. Além de cobrir mais de metade do território brasileiro, a Amazônia Legal abriga 12% da população e produz 8% do PIB do País. Como assinala Alfredo Homma, da Embrapa Amazônia Oriental, a diferença entre a participação da região no PIB e no orçamento de ciência e tecnologia (C&T) revela que, em vez de os estados mais ricos financiarem a pesquisa na Amazônia, indiretamente ocorre justamente o inverso.
Trata-se de um grave exemplo de disparidade regional, mas também de falta de visão estratégica e de longo prazo, pois, além das oportunidades perdidas, a falta de investimento em geração de conhecimento sobre a Amazônia poderá custar caro ao resto do País num futuro próximo. Basta lembrar, por exemplo, como faz Clement, que entre 25% e 50 % das chuvas que caem no Sudeste são oriundas da Amazônia.
Segundo Clement, menos de 2,8% do PIB amazônico e de 0,2% do brasileiro se referem à exploração da biodiversidade nativa da região. Constatações como essa levam José Drummond à seguinte conclusão: “Desde que se começou a falar nesse assunto, na década de 70, uma pergunta se impõe: ‘O que o Brasil quer fazer com a biodiversidade da Amazônia?’ Diante da realidade que temos visto, a resposta é: ‘Nada, não quer fazer nada’”.

Indignação e desperdício


A lógica do boom-colapso, que marca o modelo dominante de exploração da Amazônia, também atinge a área científica. Quando foi coordenador dos programas para a Amazônia do Ministério do Meio Ambiente, entre 1995 e 1999, o geógrafo Wanderley Messias, da USP, viveu um período em que os olhares do governo federal voltaram-se para a Amazônia. “Problemas da região, como os dos índios Yanomani, o desmatamento e uma onda de preocupação com possíveis riscos de internacionalização haviam chamado a atenção para a Amazônia dentro e fora do País. O governo brasileiro lançou várias iniciativas e chegou a esboçar um grande plano de desenvolvimento sustentável amplo e articulado para a região.”
Com o passar dos anos, a pressão diminuiu, surgiram obstáculos e outras prioridades. Um processo cíclico que Alfredo Homma divide em três fases: “expansão, estagnação e declínio”. A expansão, como no momento lembrado por Messias, é em geral motivada pela divulgação de más notícias, sobre desmatamento, impacto de grandes obras ou direitos humanos. São respostas oficiais à pressão, sobretudo à que vem de fora do País.
Quando Messias estava no governo, mesmo que impulsionada inicialmente por uma onda de denúncias de repercussão internacional, a intenção de investir seriamente no mapeamento e na exploração da biodiversidade parecia perto de se concretizar. Criaram-se instituições como o Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), e foram negociadas parcerias nacionais e internacionais, inclusive com a multinacional farmacêutica Novartis. Mas a iniciativa logo esbarrou em oposição política e midiática, baseada em denúncias de “pirataria consentida”, “invasão estrangeira” e “usurpação capitalista do patrimônio brasileiro na Amazônia”.
Como de costume, ao pretenso reconhecimento do valor “incalculável” das riquezas amazônicas durante o surto de indignação nacionalista, e resultante abandono do projeto de cooperação, seguiu-se uma nova fase de letargia. O chamado à ação praticamente esgotou-se na etapa mais fácil, a da desconstrução, sem resultar na efetivação de alternativas.
Hoje, as atividades do CBA, localizado em Manaus, ainda estão muito aquém do inicialmente previsto. E, pelos cálculos de Messias, o trabalho de prospecção da biodiversidade, primeira etapa do processo que poderia resultar em produtos comerciais e em desenvolvimento regional sustentável, ainda não abrange 20% do universo explorável na Amazônia.
“Na segunda metade da década passada dobrou-se o investimento em C&T na Amazônia: era de 1% do orçamento nacional e passou a ser de 2%”, conta Messias. “Hoje está em 3%, o que ainda é muito pouco, mas não há mais nada parecido com um plano nacional para a região. Nesse aspecto, estamos retrocedendo aos anos 70. Só se pensa em estrada, hidrelétrica… projetos desenvolvimentistas à moda antiga, que não levam em conta as características e potenciais especiais da região.”
José Drummond tem uma visão parecida. “O modelão desenvolvimentista tradicional ainda tem muito apoio na população, apesar de seus resultados, em termos de desenvolvimento social, serem parcos no Brasil. Hoje não há uma força política organizada que defenda de fato um modelo alternativo para a Amazônia. Grupos que se diziam comprometidos com essa meta chegaram ao poder e nada fizeram.”

Aumento descoordenado

O pequeno aumento do investimento em C&T dos últimos anos se explica pela política de reserva de percentuais, geralmente entre 30% e 40%, para as regiões Centro- Oeste, Nordeste e Norte, nas concorrências por verbas de agências federais de financiamento à pesquisa, como a Finep e o CNPq. Charles Clement conta que na instituição em que trabalha, o Inpa, os grupos mais capacitados têm conseguido, com maior facilidade, recursos sem os quais o trabalho científico ficaria praticamente inviabilizado. Isso porque, segundo o biólogo, as instituições de pesquisa têm “orçamentos fictícios”: “Teoricamente, dos 15 milhões de reais anuais destinados ao Inpa, 8 milhões de reais são para pesquisa, o que seria razoável para um instituto que tem 240 pesquisadores. Mas, na prática, pagas as contas e gastos fixos, os serviços terceirizados e as manutenções de urgência, sobram apenas 500 mil reais”.
Em situação semelhante encontra-se o Museu Emílio Goeldi. “Nosso orçamento é de 6 milhões de reais, mas, ao todo, conseguimos captar 12 milhões para pesquisa via editais”, relata o historiador da ciência e coordenador de comunicação e extensão do museu, Nelson Sanjad. Com quatro projetos de pesquisa em andamento e em constante contato com uma rede de especialistas da sua área de estudo espalhados pelo Brasil e exterior, Sanjad não se sente à margem, mas diz que o mesmo não se aplica à situação geral da região. “Falta um programa nacional para a Amazônia. Um esforço de Estado, coordenado e de longo prazo, que teria de incluir a pesquisa e a formação de cientistas, simplesmente não existe.”
Segundo José Drummond, tanto o Inpa quanto o Museu Emílio Goeldi, juntamente com a Universidade Federal do Pará, a Universidade Federal Rural da Amazônia e “talvez” a Universidade Estadual do Amazonas, já seriam um boa rede inicial de formação e pesquisa, a ser consistentemente reforçada caso se pensasse para além do “varejo” dos editais. E o desafio de dar vida e fôlego a um modelo de desenvolvimento eficiente e sustentável demanda uma articulação mais abrangente, que extrapola as instituições e práticas acadêmicas.
A exemplo da geógrafa Bertha Becker (entrevista à pág. 56), os cientistas ouvidos por PÁGINA 22 criticam a ausência de políticas que articulem redes em áreas estratégicas de pesquisa e atividade econômica para fomentar o desenvolvimento sustentável da região do único modo capaz de vingar a longo prazo: vinculado à geração de conhecimento, à adoção de inovações e à participação das populações locais.
Nas palavras do geógrafo Antonio Carlos Moraes, da USP, no que tange à floresta, “a única maneira de haver preservação efetiva é engajar a indústria e as comunidades em cadeias de prospecção e produção de alta tecnologia”. Algo que, na opinião de Moraes, demanda liderança do Estado, exigindo planejamento e ação coordenados de várias áreas e instâncias de governo, mas que nem o órgão federal mais diretamente ligado a pesquisa e inovação, o Ministério da Ciência e Tecnologia, parece ter como meta.
Contatado com semanas de antecedência, o MCT não designou ninguém para falar com PÁGINA 22 sobre a política para a Amazônia. O ministério apenas enviou um relatório de 140 páginas, referente a 2006, que se limita a relatar a continuidade de ações importantes, mas dispersas, e viabilizadas, em grande parte, graças à cooperação internacional, como o projeto Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera da Amazônia (LBA) e o do Programa Piloto para a Proteção de Florestas Tropicais (PPG7).
Na ausência de um plano mais geral e integrado para a Amazônia, para
alívio geral da Nação, as menos de sete páginas de texto do capítulo sobre as ações do ministério na região começam com a seguinte proclamação: “Base natural da maior diversidade da Terra, a Amazônia é um dos objetivos estratégicos do planejamento do MCT”.

Para aventureiros

“Não é preciso viver na Amazônia para estudá-la”, lembra Bertha Becker. Como ressalta a professora emérita da UFRJ, cujos trabalhos sobre a região se situam, há quatro décadas, na vanguarda da produção brasileira, a superação dos modelos tradicionais de desenvolvimento exige a formação e a promoção de novas redes de informação e cooperação. A interconexão de instituições, acervos, laboratórios e pesquisadores torna-se uma dimensão cada vez mais central da atividade científica, com crescente autonomia em relação a territórios e fronteiras geográficas. Mas isso não quer dizer que o trabalho in loco possa ser simplesmente dispensado.
“Em 2004, por exemplo, tivemos de adiar um trabalho de coleta de dados por causa da interdição do aeroporto de Carauari, devido à presença de um lixão nas proximidades que atrai muitos urubus”, conta a bióloga Carla Morsello. Professora da USP, Carla estuda os impactos socioambientais do engajamento de comunidades tradicionais, no Médio Juruá (AM) e em áreas indígenas do Pará, em cadeias de produção e comercialização de produtos da floresta, como o óleo de andiroba, que terminam incorporados a artigos de grandes marcas da indústria de cosméticos, como a brasileira Natura e a britânica The Body Shop.
Na impossibilidade do pouso em Carauari, os pesquisadores gastariam duas semanas apenas para ir e voltar do campo de pesquisa, o que acabou por obrigá-los a cancelar a viagem. Estudiosa de regiões e temas perfeitamente qualificáveis como estratégicos para o País, Carla, como a grande maioria dos que decidem fazer pesquisa na Amazônia, tem de enfrentar muitos obstáculos.
Trabalho sujeito a custos, dificuldades e incertezas adicionais, a pesquisa na região amazônica não conta com incentivos nem flexibilidade condizentes por parte das agências financiadoras nacionais. Somente a espera por licenças da Funai e do Ibama, por exemplo, muitas vezes implica prazos incompatíveis com os exigidos por órgãos como a Capes.
Tanto que, em vários programas de mestrado, nos quais os alunos devem permanecer por não mais que dois anos, evitam aceitar projetos de pesquisa que exijam trabalho de campo na Amazônia. “É mais fácil obter autorização para derrubar 20% da mata nativa de uma grande propriedade do que para estudar o potencial econômico da biodiversidade que será extinta pelo mesmo desmatamento”, exemplifica Charles Clement.
Outra dificuldade, conta Carla, é fazer com que o conhecimento gerado pela pesquisa retorne de forma a beneficiar as populações locais. “Isso poderia ser feito mediante parcerias com ONGs, pois são elas que têm maior presença nas comunidades”, sugere a bióloga. Na ausência de um mecanismo que permita, sempre que possível, a utilização social do saber científico, os pesquisadores muitas vezes são tentados ou pressionados a “pagar” pela boa vontade dos locais com ajudas assistencialistas, como comprar a gasolina para o motor de um barco.

Vazio a ser ocupado

Os sistemas de controle e avaliação por parte dos órgãos estatais também são criticados pelos cientistas. “Os financiamentos daqui exigem como contrapartida inúmeras etapas de prestação de contas durante o trabalho e pouco enfatizam os resultados obtidos no fim do processo”, diz Carla, que conta com financiamento internacional para desenvolver sua pesquisa. “Na Amazônia, pesquisador é tratado como pirata, enquanto os verdadeiros criminosos raramente são importunados”, resume Clement.
Mas, na visão de José Drummond, pelo menos um dos aspectos dos ciclos de boom-colapso está sendo deixado para trás. “Acho que, de agora em diante, por fatores como as mudanças climáticas, o assunto Amazônia não vai mais passar por fases de desaparecimento da mídia e das discussões nacionais e internacionais como no passado”, avalia o sociólogo.
Na opinião de Drummond, na ausência de ações estatais mais decididas, cabe à sociedade civil, às ONGs, às populações da região e à comunidade científica assumir maior protagonismo em movimentos pela verdadeira valorização das riquezas amazônicas. Tesouros que só poderão ser usufruídos e preservados com a auxílio de saberes científicos que, em grande parte, ainda estão por ser gerados e aplicados.

publicado na Página 22 (Amazônia – A Lógica do Jogo / edição nº 13 de 2007

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